Presidência de crise: como a liderança portuguesa pode guiar a UE na era pós-covid

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Summary

  • Os planos de Portugal para a presidência da UE centram-se nas prioridades europeias para o mundo pré-coronavírus.
  • Estas abarcam a conclusão da união monetária, a relação pós-Brexit UE-Reino Unido, as relações da UE com a África e com a Índia, as alterações climáticas, a transformação digital e a desigualdade social.
  • A presidência portuguesa da UE deve tratar estas questões de acordo com as percepções dos eleitores europeus sobre a nova realidade criada pelo coronavírus.
  • Muitos europeus perderam confiança nas relações transatlânticas, temem pelo lugar da Europa num mundo dominado pela competição EUA-China e querem que a UE forneça uma liderança global capaz de modelar a ordem internacional.
  • Portugal pode ajudar a UE a desenvolver uma estratégia de política externa que tenha em conta estas mudanças.

Introdução

Portugal tinha grandes expectativas para 2020. O país tinha estabilidade política e a sua economia começava a crescer. Tudo indicava um ano que culminaria com a presidência portuguesa do Conselho Europeu no primeiro semestre de 2021 – pela quarta vez desde que em 1986 aderira à Comunidade Económica Europeia.

No seu tradicional discurso ao corpo diplomático no início de 2020, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, esboçou uma agenda para a presidência que visava integrar simultaneamente os desafios que o projeto europeu enfrenta atualmente com as prioridades estratégicas de Portugal. Essa agenda organiza-se em torno de quatro pilares.

Em primeiro lugar, Lisboa vê a presidência da UE como uma oportunidade de ouro para pressionar a conclusão da União Económica e Monetária. Em segundo lugar, na sequência do Brexit, sabe que é necessário estabelecer os termos da futura relação entre a União Europeia e o Reino Unido. Como nunca quis que esta separação acontecesse, Portugal está entre os países da UE cuja principal prioridade é que o divórcio decorra de forma harmoniosa e sem ambiguidades. Em terceiro lugar, Portugal entende que a maioria dos principais desafios que a UE enfrenta são externos. Decorrem da erosão da ordem internacional liberal – liderada até recentemente pelos Estados Unidos – e do consequente enfraquecimento do multilateralismo. Lisboa pretende promover o multilateralismo como valor político e princípio de ação da UE que está no ADN da integração europeia. Por último, Santos Silva referiu como objetivo alinhar três questões fundamentais para o futuro de Portugal e da UE – as alterações climáticas, a transição digital e o bem-estar social – num único ‘cabaz’ de políticas.

Era um bom plano. Mas, poucas semanas depois desse discurso, surgiu o coronavírus – mudando a natureza do desafio que a presidência portuguesa enfrentaria.

O presente artigo analisa como as preocupações atualmente dominantes na UE devem orientar a presidência portuguesa depois do início da crise do covid-19. Baseia-se em inquéritos conduzidos junto de políticos, em entrevistas e – acima de tudo – em dados de um estudo de opinião pública que o YouGov realizou para o European Council on Foreign Relations (ECFR) em nove estados membros da UE, em Abril e Maio de 2020, cobrindo dois terços da população e do PIB da UE.

O presente artigo argumenta que Lisboa terá de adaptar as prioridades que tinha originalmente enunciado à nova realidade com que se deparam agora os eleitores europeus. Os europeus perderam muita confiança nas relações transatlânticas e estão cada vez mais preocupados com o lugar da Europa num mundo dominado pela competição EUA-China. No entanto, longe de quererem limitar-se a fechar as escotilhas e deixar a tempestade passar, gostariam que seus líderes preenchessem o vazio na liderança global criada pela rivalidade sino-americana e, desse modo, moldassem a ordem internacional. Se a presidência alemã enfatizou a necessidade de construir a soberania europeia; Portugal tem de mostrar à UE como isso pode ser feito, produzindo resultados através das instituições internacionais que a elite da política externa portuguesa tanto preza.

Uma oportunidade de liderança global

Em Abril e Maio, ao mesmo tempo que a primeira vaga do coronavírus começava a retroceder, o inquérito realizado pelo ECFR mostrou que os europeus desejavam fortemente que a UE moldasse a ordem internacional no pós-crise. Sessenta e três por cento dos europeus estão convencidos de que o covid-19 mostrou a necessidade de maior cooperação interna na UE e 52 por cento que o bloco deveria ter uma resposta mais coordenada às ameaças e aos desafios globais. A natureza global da pandemia fez com que os eleitores reconhecessem a importância das economias de escala na resposta à crise. Tanto na Alemanha como em França, houve um apoio particularmente forte no sentido da relocalização da produção: mais de 50 por cento dos inquiridos deseja que a fabricação de compostos medicinais regresse à Europa, e cerca de 40 por cento que o mesmo aconteça com outros produtos. Os eleitores expressaram claramente o desejo de uma Europa que seja um único espaço regional capaz de defender os interesses europeus num mundo marcado pela competição geopolítica.

No entanto, mostraram também muito menos certezas quanto às capacidades das instituições da UE protegerem os interesses europeus no momento atual. Quarenta e sete por cento dos inquiridos acham que a UE tinha sido irrelevante durante a crise do coronavírus. Os eleitores mostraram ainda pouca confiança na capacidade ou na disposição de outros atores terem em consideração as suas necessidades. Em 2019, um outro inquérito do ECFR mostrou que os europeus estavam cada vez mais preocupados com a competição EUA-China, preferindo que a Europa se tornasse um jogador suficientemente poderoso para não ter que escolher lados naquela contenda. Todavia, em 2020, essa perspectiva parece ter evoluído no sentido de uma profunda perda de fé na vontade ou na capacidade dos Estados Unidos e da China moldarem o sistema internacional para além da proteção de seus próprios interesses.

Em todos os estados-membros onde se realizou o inquérito este ano, exceto em Itália, na Polônia e na Bulgária, foram maioritários os que afirmaram que a sua opinião sobre os EUA piorou durante a crise do coronavírus. E, mesmo nesses três países, grandes minorias demonstraram ter a mesma opinião. A proporção de inquiridos que afirmam que os Estados Unidos têm sido um aliado importante para seu país é este ano muito baixa – atingindo apenas os 6% em Itália. As percepções acerca da China e da Rússia também se tornaram mais negativas entre quase todos os grupos de eleitores e em quase todos os países. São muitos os que na Europa culpam a China pelo inicio da crise do coronavírus, incluindo maiorias em todos os estados-membros objecto deste inquérito, com a exceção de Espanha e da Bulgária.

O retraimento da América da liderança internacional e a abordagem truculenta do presidente Donald Trump aos países europeus num momento de emergência global podem ser as principais razões pelas quais os europeus se mostram cada vez mais cautelosos com o seu aliado no Atlântico. Notam as diferenças evidentes entre os acontecimentos dos últimos meses e a anterior liderança dos Estados Unidos na resposta a outras crises de saúde, como da ébola e da SIDA, no estabelecimento de coligações internacionais e na modelação de instituições multilaterais. E, todavia, muitos europeus ainda parecem acreditar que é necessário um ator que assuma o antigo papel dos Estados Unidos de liderar através das instituições internacionais. Em todos os países onde se realizou este inquérito, aqueles que afirmam que desde o início da crise do coronavírus se tornaram mais favoráveis ao Estado de direito, aos direitos humanos e à democracia superam significativamente os que defendem a visão oposta.

Curiosamente, a deterioração das opiniões sobre os EUA parece andar de mãos dadas com a defesa de uma maior cooperação da UE em matéria de desafios internacionais. Setenta e três por cento dos inquiridos em Portugal afirmam que as suas percepções sobre os EUA tinham piorado e que querem mais cooperação ao nível da UE – representando a maior percentagem entre todos os países inquiridos. Portugal é também o país mais pró-UE neste aspecto, pois até os 21 por cento dos portugueses que afirmam que as suas percepções sobre os EUA não tinham mudado, defendem também uma maior cooperação da UE.

Como a Espanha, a Dinamarca e a Suécia, a Alemanha também demonstra uma forte correlação entre a deterioração da visão sobre os EUA e um desejo de maior cooperação ao nível da UE em matéria de desafios globais. Parece assim, que a transição da presidência alemã para a portuguesa não implicará uma perda de apoio político interno no que toca à UE assumir um novo papel geopolítico – um papel no qual pode moldar a ordem internacional, fornecer bens públicos globais e proteger os interesses europeus.

Essa nova posição teria duas vantagens. Em primeiro lugar, preencheria o vazio de liderança que os eleitores identificaram. Em segundo lugar, ao influenciar o discurso global sobre as questões com que os europeus se preocupam – das alterações climáticas à saúde e à soberania económica – a UE demonstraria o potencial da cooperação europeia e ajudaria a resolver a decepção generalizada com a  resposta à crise do coronavírus.

Liderança global europeia com sotaque português

Pedir à presidência portuguesa para pressionar a UE a exercer maior liderança no sistema multilateral pode parecer redundante: cada instinto de um diplomata português empurra-o naturalmente nessa direção, como estas mesmas autoras argumentaram em 2019. E, de acordo com o 2020 EU Coalition Explorer do ECFR, o empenho de Portugal no aprofundamento da cooperação europeia é bem compreendido e apreciado pelos decisores políticos dos outros Estados-Membros. Portugal ocupa o sétimo lugar na tabela como os Estados-Membros percepcionam o seu empenho neste aprofundamento da integração europeia. É razoável portanto esperar que a presidência portuguesa pressione no sentido da Europa se tornar um ator mais coeso na cena mundial.

Em 2019, o inquérito do ECFR mostrou que os portugueses tinham uma visão algo idealista de como o seu país poderia agir enquanto potência multilateral, equilibrando as relações transatlânticas e europeias. No entanto, o inquérito deste ano mostra que, tal como os seus homólogos de outros pontos da UE, os eleitores portugueses estão agora muito mais conscientes das tensões nas relações transatlânticas e, em parte também, dos limites das instituições da UE. Nesse sentido, poderá fazer sentido para o público nacional que a presidência portuguesa pressione a UE para que esta seja pragmática nas relações com as outras grandes potências, tendo em vista reconstruir um sistema internacional baseado em regras e ao mesmo tempo proteger os interesses globais da Europa. Como Anthony Dworkin e Richard Gowan demonstraram em 2019, isso implicaria trabalhar caso a caso com outros parceiros, e para lá das discordâncias em certas questões. Esta abordagem permitiria à UE construir coligações em determinados domínios como as mudanças climáticas, a saúde global e o controlo das novas tecnologias.

A China e a Rússia poderiam tentar obstruir esse esforço – bem como os EUA, dependendo do resultado das suas eleições presidenciais de novembro próximo. A China tem um historial relativamente bem-sucedido de explorar as diferenças entre os estados membros da UE usando a iniciativa 17 + 1. O inquérito do ECFR sugere que a muito divulgada “diplomacia de máscara” da China – que se traduziu numa ajuda intencional de equipamento de saúde, pessoal médico e apoio à investigação nessa área (e que está bem documentado no European Solidarity Tracker) – teve o mesmo efeito. As diferenças nas mudanças de percepções dos Estados membros relativamente à China durante a crise do coronavírus correlacionam-se com as diferenças no nível do apoio chinês que receberam durante a crise. Na Itália e na Bulgária, beneficiárias de quantias bastante significativas de ajuda chinesa, apenas 37% e 22% respectivamente dos cidadãos afirmaram que as suas percepções sobre a China pioraram durante a crise. Na Dinamarca e em França, que receberam muito menos atenção da China durante a crise sanitária, 62 por cento dos cidadãos demonstraram ter uma opinião negativa.

Portugal parece estar numa boa posição para usar a sua presidência para definir uma abordagem pragmática da UE em relação à China, pois encontra-se algures no meio da tabela no que toca a receber ajuda chinesa. Como mostra o European Solidarity Tracker, o país recebeu níveis comparativamente elevados de apoio médico de Pequim (quer diretamente através do governo em Lisboa, quer indiretamente através das autoridades locais), mas 46 por cento dos portugueses afirmam que a sua percepção da China piorou durante o crise – próximo da média da UE, que se situa nos 48 por cento. O que parece sugerir que os portugueses estão bastante cientes de que as doações da China não são totalmente altruístas.

O Governo português reconhece a complexidade da relação entre a UE e a China, mas considera-a crucial. Do ponto de vista do governo português, não ter um relacionamento com este interlocutor – que é afinal um país com 1,4 mil milhões de cidadãos, a segunda maior economia do mundo e com uma capacidade crescente de projeção de poder global – equivaleria a ignorar um dos principais elementos da realidade estratégica da atualidade. Portugal orgulha-se de ter uma das ligações mais antigas de qualquer país europeu com a China: como os diplomatas de Lisboa costumam referir, já se passaram 500 anos desde que um navegador português se tornou o primeiro europeu a desembarcar na China. Com a exceção do Estado Novo de Salazar, as relações entre os dois países sempre foram estáveis e frutíferas. O que se refletiu na transição relativamente suave entre as administrações portuguesa e chinesa em Macau.

E, no entanto, a atual relação entre os dois países é profundamente assimétrica, especialmente nas áreas do comércio e do investimento direto: as exportações de Portugal para a China têm um valor inferior a mil milhões de euros por ano, enquanto o valor das importações da China ultrapassa os 2,2 mil milhões de euros. Além disso, o investimento chinês em Portugal intensificou-se após a crise financeira de 2008 – em parte porque a UE e o Fundo Monetário Internacional forçaram Lisboa a acelerar as privatizações como parte do acordo de resgate financeiro. Estas aquisições tornaram Portugal um dos maiores destinatários per capita de investimento chinês na Europa (ainda que, em termos absolutos, este continue a concentrar-se noutros países, especialmente no Reino Unido, na Alemanha e em França). A China possui hoje interesses significativos nos sectores da energia, da banca, dos seguros, do turismo, portuário e na saúde em Portugal.

Além disso, em 2018, os dois países formalizaram uma relação estratégica, tendo Portugal aderido à Iniciativa Cinturão e Rota. Os chefes de governo português e chinês trocaram entretanto visitas de Estado. E, no ano passado, Portugal tornou-se o primeiro país da zona euro a emitir os chamados “títulos de dívida Panda” (em divisa chinesa e emitidos por um Estado que não a China).

Depois de alguns críticos se referirem a Portugal como o “amigo especial” da China na UE, o governo português respondeu alertando contra tendências protecionistas na Europa. Argumentou também que, até agora, a China tem mostrado absoluto respeito pelos quadros jurídicos português e da UE.

Simultaneamente, as autoridades portuguesas afirmaram que aceitam a necessidade de uma política europeia forte em relação à China. Na perspectiva de Lisboa, a UE deve reforçar pragmaticamente o seu diálogo estratégico com a China, abordando a assimetria nas suas relações, ao mesmo tempo que reconhece que Pequim é um parceiro indispensável num mundo de interdependência global e múltiplos desafios. Só aumentando a cooperação em áreas de interesse mútuo é que os Estados membros podem criar um relacionamento mais equilibrado (incluindo nas áreas prioritárias, como a da abertura do mercado chinês) e evitar que Pequim aproveite a crise do covid-19 para explorar as diferenças entre eles.

De acordo com o ministro Santos Silva, “não existe nenhuma ambiguidade. [Com a China] somos parceiros, não aliados ”. Lisboa confirmou recentemente que nenhuma empresa chinesa estaria associada ao desenvolvimento dos seus serviços 5G e que, num futuro próximo, seria mais cuidadosa no acompanhamento dos novos investimentos chineses em sectores estratégicos do país. Se, até ao final do ano passado, as relações de Portugal com a China eram essencialmente motivadas por preocupações económicas de curto e médio prazo, isso parece estar a mudar. Tal mudança resulta provavelmente da pressão dos EUA – o embaixador americano em Lisboa disse recentemente que Portugal tinha de escolher entre os EUA e a China ou arriscava sofrer as consequências -, de uma mudança na opinião pública portuguesa, e de preocupações crescentes sobre as verdadeiras intenções da China a longo prazo.

Numa abordagem complementar, o governo português vai acolher uma cimeira UE-Índia durante a sua presidência do Conselho Europeu. A convite do presidente do Conselho Europeu e das autoridades portuguesas, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi visitará o Porto em Maio de 2021. A iniciativa pretende relançar as negociações da UE com a Índia relativas ao ambicioso acordo de comércio e investimento (que está suspenso desde 2013), ao mesmo tempo que procura um parceiro alternativo à China na Ásia, visando um reequilíbrio sistémico. Seguindo a mesma lógica, a presidência portuguesa procurará realizar reuniões adicionais de alto nível entre a UE e os países da América Latina, bem como com a União Africana.

De facto, foi durante as anteriores presidências portuguesas do Conselho Europeu (em 2000 e 2007) que o bloco de países iniciou as suas cimeiras com o Brasil e os países africanos, respectivamente. Já à época os outros Estados membros da UE notaram o entusiasmo de Portugal pelo multilateralismo. Mas desde então, em resultado do Tratado de Lisboa, realizaram-se mudanças significativas na dinâmica institucional da UE, tendo as presidências rotativas adquirido outra enfâse. As competências dos Estados-Membros e a sua influência direta nas relações externas diminuíram com a criação dos cargos de presidente da UE e de alto representante da União para a política externa e de segurança, enquanto a Comissão Europeia e o Serviço de Ação Externa assumiram  um papel de maior destaque. No entanto, as relações históricas e a influência cultural e política direta dos países da UE ainda continuam a fazer a diferença neste domínio.

É o caso de Portugal em África – um continente pelo qual os outros Estados-Membros mostram surpreendentemente pouco interesse. De acordo com dados do 2020 EU Coalition Explorer, Portugal é o único país da UE a incluir a política de África entre as cinco principais prioridades da União para os próximos anos (em segundo lugar, a seguir à política fiscal). Em contraste, no seu conjunto a UE27 colocou a política para a África em 17º lugar entre as 20 áreas potencialmente prioritárias.

Como tal, a importância que Portugal atribui a África pode contribuir para que o país assuma um papel central na definição da política da UE para com aquele continente. Quer através da obtenção de apoio para as suas posições políticas de outros Estados-Membros da UE que têm algum interesse em África. Quer também daqueles que ainda não detém fortes preferências naquela área regional. E Lisboa já está à procura dessas oportunidades. Por exemplo, tendo a pandemia impossibilitado a realização da próxima cimeira UE-UA durante a presidência alemã, Portugal manifestou expressamente o desejo de acolher esse evento e discutir uma nova estratégia com o continente. No entanto, a realização portuguesa da cimeira implica uma viragem inesperada.

Portugal defende que a UE não deve limitar a sua política com África aos países que atualmente constituem os desafios mais significativos – como os do Norte de África, em particular o Sahel – mas deve tratar todo o continente como sendo importante. Além disso, na perspectiva de Lisboa, a Europa foi de certo modo abandonando África à influencia de outras grandes potências na última década – nomeadamente à China – e agora precisa de estabelecer uma parceria nova e mais equilibrada com o continente. Neste sentido, Portugal está em sintonia com a proposta de uma nova relação estratégica com África que a Comissão Europeia apresentou em Março de 2020. Esta proposta recomenda uma relação mais forte e equilibrada entre as partes, inclusive através da cooperação em áreas-chave como a transição verde; a transformação digital; o crescimento e emprego sustentável; a paz e a governança; e a migração e mobilidade.

No entanto, apesar das suas credenciais multilateralistas, o governo português defende que qualquer estratégia europeia abrangente para a África deve ter em conta as abordagens e os interesses individuais dos Estados-Membros naquele continente. Entre um quarto e um terço dos portugueses que responderam ao inquérito do 2020 Coalition Explorer defendem que o estabelecimento de relações com os países africanos devem ser feitas através dos governos nacionais ou de coligações fora do quadro da UE. A política para África parece ser o domínio em que Portugal não só mais favorece uma abordagem nacional, como – à semelhança do que acontece no domínio da política de defesa – é menos pró-UE do que a maior parte da UE27. Talvez Portugal não esteja disposto a partilhar com os outros estados membros da UE os seus conhecimentos e contatos com determinadas regiões de África – ativos que lhe são reconhecidos internacionalmente e que foram dando a Lisboa uma importante influência em vários fóruns.

E depois há o Brexit. Tal como as coisas estão, é pouco provável que o período de transição culmine na assinatura, até 31 de dezembro, de um acordo sobre as futuras relações UE-Reino Unido. O que trará mais um importante desafio para a presidência portuguesa. Do ponto de vista estratégico, Portugal sente-se pouco confortável com a situação atual. O país mantém a sua aliança bilateral de longa data com o Reino Unido mas, a nível multilateral, é a primeira vez em várias décadas que integra uma coligação europeia sem aquele país.

Deste modo, para além de querer estabelecer os termos de uma futura relação que tanto beneficie Bruxelas como Londres (o que para Lisboa significa a relação mais próxima possível), Portugal está também ansioso para ver como é que pode manter e aprofundar a sua aliança bilateral. Além disso, está preocupado com o impacto imediato da saída do Reino Unido na política interna da UE. Por razões óbvias – nomeadamente geográficas – Portugal sempre valorizou uma relação equilibrada entre a Europa Atlântica e a Europa Central. Na esteira da presidência alemã (com óbvias inclinações para a Europa Central) e precedendo a presidência eslovena (que trará uma perspectiva mais europeia de leste), a presidência portuguesa pretende dar uma ênfase mais atlântica e ocidental ao equilíbrio de poder dentro da UE . O que poderá ser feito com o apoio de parceiros que têm preocupações estratégicas semelhantes, como a Irlanda, a Dinamarca e a Suécia.

Os planos de Lisboa para a UE

Como a Susi Dennison e o Pawel Zerka analisam no seu estudo Together in trauma: Europeans and the world after covid-19, a resposta imediata de Portugal à pandemia de covid-19 foi marcadamente mais eficaz do que a dos grandes países do sul da Europa. Em consequência, – e contrariamente ao observado relativamente a Madrid e Roma – o governo de Lisboa viu reforçada a sua posição política. Como mostra o inquérito do ECFR, no final de Abril e início de Maio, 61 por cento dos portugueses tinham uma visão mais positiva do governo do que antes do início da crise. Em contraste, 53 por cento dos inquiridos em Portugal consideraram as instituições da UE irrelevantes na resposta à pandemia. No entanto, em Junho, o número de infecções na área da grande Lisboa começou a aumentar e as autoridades de saúde começaram a mostrar sérias dificuldades em quebrar as cadeias de contágio. Como em vários outros estados membros, as infecções continuaram a crescer depois do regresso dos cidadãos das férias de verão. Ao mesmo tempo, os portugueses começaram a sentir as primeiras consequências económicas e sociais da crise. Lenta mas inexoravelmente a percepção inicial do público sobre o governo e o papel da UE na crise começou a mudar.

Mais de seis meses após a chegada do covid-19 à Europa, os portugueses perspectivam a crise em duas fases distintas: a primeira, centrada na saúde, chegou ao fim com a eliminação gradual das medidas iniciais de confinamento; a segunda, agora a começar, é marcada pelos nefastos efeitos económicos e sociais da pandemia. Enquanto a primeira fase exigia principalmente soluções domésticas, a segunda exige medidas económicas e sociais mais amplas destinadas a estimular o crescimento e a prevenir uma recessão profunda.

Noventa e um por cento dos portugueses inquiridos no estudo realizado pelo ECFR em Maio, consideram que nesta segunda fase é necessária uma maior cooperação a nível da UE. Em geral parecem não ter confiança nas autoridades nacionais para responder ao tipo de desafios que têm pela frente. De facto, apenas 9 por cento dos portugueses acreditam na capacidade de autossuficiência do seu país (um dos níveis mais baixos da UE). Por outro lado, 75 por cento espera receber apoio das instituições europeias ou de outros Estados-Membros. E isso explica porque é que o esforço no sentido da criação de uma Europa mais resiliente se encontra no cerne das preocupações da presidência portuguesa.

O governo português tem prioridades claras para a Europa pós-coronavírus: superar as divisões norte-sul relativamente à importância da solidariedade financeira; fortalecer a capacidade de apoio social do continente em preparação para a crise que se aproxima; fazer a transição para um novo modo de vida – mais verde e mais digital. Portugal foi um dos países europeus mais afectados pela crise da zona euro, que criou divisões significativas no seio da UE. Esta experiência fez do governo socialista português – que assumiu o poder em outubro de 2015 e foi reeleito no ano passado – um vigoroso defensor de uma maior solidariedade europeia.

Com a chegada de covid-19, Lisboa voltou a ficar muito preocupada com a divisão entre os países mais ricos do Norte, que têm mais amortecedores contra a recessão iminente, e os países do Sul, que se sentem mais vulneráveis. O governo português argumenta que as assimetrias e os desequilíbrios entre os Estados-Membros não só põem em perigo a estabilidade do mercado único, como também podem limitar a  própria resiliência europeia. De fato, os dados do inquérito do ECFR realizado em maio, confirmam que a noção de solidariedade financeira é relativamente impopular nas partes mais ricas da UE e, inversamente, é mais valorizada nas partes sul e periféricas do bloco. É evidente que na batalha política entre os países “frugais” e todos os outros, Portugal se coloca firmemente do lado destes últimos. E usará a sua presidência da UE para reforçar os valores e as políticas de solidariedade financeira europeia. Aliás, Lisboa está muito comprometida com a noção de que tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias.

Da mesma forma, o governo português encara a sua próxima presidência da UE como uma boa oportunidade para pressionar a concretização da União Económica e Monetária. Augusto Santos Silva argumenta no seu discurso ao seminário diplomático de Janeiro de 2020, que isso não só proporcionaria uma capacidade orçamental para apoiar reformas e investimentos, como levaria a uma verdadeira convergência das diversas economias da zona euro, bem como criaria uma capacidade de estabilização efetiva que permitiria lidar com as assimetrias de choques futuros. Para Lisboa a conclusão da UEM é também condição sine qua non para reforçar o peso internacional do euro num contexto de abrandamento da economia mundial.

Durante a sua presidência, Portugal também procurará alinhar esforços para abordar três questões que considera fundamentais para a resiliência da Europa no futuro próximo: as alterações climáticas, a transição digital e o bem-estar social. Lisboa considera que estas três questões estão não apenas interligadas, mas também são mutuamente dependentes. As duas primeiras questões – alterações climáticas e transformação digital – resultam de profundas transições sociais, económicas e culturais que já estão em andamento e são prioridades da Comissão von der Leyen. As presidências alemã e eslovena também colocam grande ênfase nestes desafios, tal como o Parlamento Europeu. Ainda assim, o principal objetivo da presidência portuguesa será abordar estas duas questões juntamente com a questão social na UE (em linha com a Declaração de Gotemburgo de Novembro de 2017).

A natureza dos desafios que a UE enfrenta nestas três áreas sugere que não é possível abordar nenhum deles isoladamente. Como pode a Europa tornar a ação climática compatível com o crescimento económico? Como pode transformar o crescimento verde numa reforma do sector agro-industrial? Como pode gerar novos empregos em quantidade suficiente na economia digital? Como pode educar e treinar os cidadãos para ter sucesso nestas transições? Como pode ao mesmo tempo fortalecer a proteção social? E como pode melhorar a produtividade e reduzir a desigualdade? Estas são algumas das questões à volta das quais o Governo português pretende lançar um amplo debate que culminará na realização de uma Cimeira Social (no âmbito de uma reunião informal do Conselho Europeu) no Porto, em Maio de 2021.

Portugal está claramente empenhado na transição verde e na redução das emissões de gases com efeito de estufa. Com o objetivo atingir a neutralidade carbónica até 2050, o país já está a implementar um plano nesse sentido. Além disso, o Governo português apoia firmemente a implementação de um Fundo de Transição Justa, bem como o desenvolvimento de medidas políticas ambiciosas ao nível da UE para honrar os compromissos assumidos no Acordo de Paris. A nível interno, existe no país um forte consenso social e político sobre estas políticas: os dados do inquérito do ECFR mostram que 58 por cento dos portugueses se tornaram ainda mais favoráveis aos compromissos relativos às alterações climáticas desde o início da crise covid-19.

Por fim, o Governo português reconhece a crescente relevância da economia digital e da inteligência artificial (IA) não só a nível nacional e da UE, mas também num contexto estratégico mais alargado. No entanto, Lisboa sublinha que os benefícios materiais da digitalização e da adoção generalizada da AI não devem minar os valores europeus centrados no ser humano. De acordo com o Índice de Digitalidade da Economia e Sociedade de 2019 da Comissão Europeia, Portugal faz parte de um conjunto de países da UE apenas com “desempenho médio” nestes domínios (ocupando o 19º lugar na UE28). Portugal reconhece que individualmente não é competitivo nestes domínios, e que necessita de se alinhar ainda mais com a estratégia e as políticas da UE nestas áreas. As autoridades portuguesas esperam que isso aconteça em resultado da presidência da UE. Estão também convencidos que esta permitirá criar uma maior consciência entre os cidadãos portugueses da importância destas questões inovadoras e algo técnicas.

Portugal vai ganhar apoio para a sua agenda?

Esta é uma agenda complexa e ambiciosa para um país como Portugal. No entanto, face às sucessivas crises ocorridas nos últimos anos Portugal foi-se assumindo como um Estado-Membro empenhado no aprofundamento da integração europeia. O país tem inegáveis fragilidades estruturais – económicas e sociais – e uma posição periférica que às vezes faz com que a sua voz não seja ouvida. Além disso, a saída do Reino Unido do projeto alterou o equilíbrio interno do UE forçando Portugal a procurar coligações com outras potências.

De acordo com a edição 2020 do EU Coalition Explorer, Portugal ocupa o 18º lugar em termos de influência global, capacidade de resposta, contactos e interesses partilhados. É, portanto, um país do meio da tabela. Com exceção de Espanha e de Itália, são poucos os países membros da UE que vêm Portugal como um parceiro privilegiado. Outros países com níveis de influência semelhantes – como a Grécia, a Croácia, a Eslovênia, o Chipre e a Eslováquia – consideram Portugal um parceiro em potência. O mesmo estudo também classifica Portugal como sendo aquele país que, à exceção da Letónia, menos decepcionou os outros Estados-Membros. Todos estes elementos sugerem que ainda tem margem para aumentar a sua influência. E, nesse sentido, os desafios do momento presente constituem uma boa oportunidade para Portugal.

A UE precisa agora de ser capaz de usar o seu papel global e as suas políticas internas para unir os eleitores, respondendo às questões que mais os preocupam. O facto de 63 por cento dos europeus serem a favor de mais cooperação a nível europeu, mostra que, desde que o bloco consiga demonstrar o seu propósito e eficácia aos eleitores, existe apoio popular para uma UE mais forte. Apesar do seu estatuto de Estado-membro de pequena-média dimensão, Portugal pode ter grandes ambições nesta área – em especial porque muitas das prioridades dos eleitores para a era pós-pandémica são coincidentes com as suas ambições originais para a presidência.

É certo que durante as recentes negociações sobre o Quadro Financeiro Plurianual Portugal demonstrou pode servir de ponte entre os diferentes grupos da UE. A habilidade demonstrada por Lisboa pode ser valiosa nas discussões sobre como lidar com Pequim na sequência do covid-19, juntando a  simpatia dos países do sul mais atingidos, com uma avaliação mais perspicaz sobre as intenções da China em moldar as regras do sistema internacional a seu favor.

Da mesma forma, a cooperação eficaz de Portugal com a França durante a crise (como parte de uma aliança mais ampla do sul que fez pressão no sentido de um mecanismo de recuperação generoso), poderá representar um primeiro impulso para uma abordagem mais a longo prazo para a UE. Com um governo estável quando comparado a outros países do sul da UE, Portugal está em boa posição para ser uma voz importante no sul – uma voz que se poderia amplificar através de uma cooperação estreita com a França. Como mostra o Coronavirus Special do ECFR, Lisboa e Paris vêem-se mutuamente como estando entre os parceiros mais úteis no que toca os aspectos económicos da pandemia. Tirando partido da parceria com a França, e da aposta no reforço do papel da UE na cena global que partilha com a Alemanha, Portugal contará com o apoio dos dois maiores Estados da UE na defesa da sua agenda internacional junto dos outros parceiros europeus.

Nos últimos anos, os governos e o aparelho diplomático de Portugal têm sido relativamente bem-sucedidos na projeção de uma imagem positiva da abordagem do país à Europa e ao mundo. De 2011 a 2015 o governo social-democrata procurou reforçar o papel de Portugal na globalização tornando-o mais aberto ao mundo (área em que o país foi pioneiro em épocas anteriores). O atual governo socialista continuou este caminho, mas acrescentou outra dimensão ao transformar-se de participante em jogador. Tendo sido considerado “o bom aluno da Europa” durante muitos anos (pelo menos a nível nacional), Portugal está agora a fazer um maior esforço para que o resto da Europa ouça as suas preocupações. O Primeiro-Ministro António Costa tem sido muito assertivo nesta matéria. E o facto de o Ministro das Finanças, Mário Centeno, ter presidido ao Eurogrupo durante dois anos e meio, foi prova dessa nova abordagem. A crise financeira de 2008 impulsionou o governo português a assumir este papel alargado, e este espera agora que a pandemia ajude o país a amplificar ainda mais a sua voz. Há sinais de que a presidência portuguesa da UE pode ser exatamente o impulso que o país necessita nesse sentido.

Agradecimentos

As autoras estão muito agradecidas a Phillip Dreyer pela sua análise dos dados do inquérito usados neste artigo, a Pawel Zerka pelas suas sugestões e comentários enquanto íamos alinhando as ideias, e a Marlene Riedel pela elaboração dos gráficos. Também estamos agradecidas às equipas do YouGov e da Datapraxis pelo seu apoio no desenvolvimento e realização do inquérito e, claro, à Fundação Calouste Gulbenkian pelo seu apoio generoso a este projeto. A edição do Chris Raggett melhorou consideravelmente a nossa escrita, mas qualquer erro mantém-se da nossa inteira responsabilidade.

Sobre as autoras

Susi Dennison é investigadora sénior de política no European Council on Foreign Relations e diretora do programa European Power do ECFR. Neste qualidade, explora temas relacionados com estratégia, coesão e as políticas associadas à Política Externa e de Segurança Comuns da UE. Durante cinco anos liderou o projeto European Foreign Policy Scorecard do ECFR. Desde o inicio de 2019 supervisiona a investigação relativa ao projeto Unlock do ECFR. Entre as suas mais recente publicações encontram-se “Together in Trauma: Europeans and the World after covid-19”com Pawel Zerka; “Give the people what they want: Popular demand for a strong EU foreign policy”; e “The instinctive multilateralist: Portugal and the politics of cooperation” com Lívia Franco.

Lívia Franco é professora e investigadora residente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP). É também investigadora associada do ECFR desde 2010, participando nessa qualidade em vários dos seus projetos. Investiga nas área da Política Internacional Contemporânea, Questões de Segurança e Defesa, Estudos de Democracia e Política Externa Portuguesa. Comenta ainda Assuntos Internacionais nos media portugueses e internacionais.

Este artigo foi possível graças ao patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian.

The European Council on Foreign Relations does not take collective positions. ECFR publications only represent the views of their individual authors.