A Alemanha faz o seu caminho

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1. O Parlamento alemão aprovou na sexta-feira, por larga maioria (445 para 146, quase todos do Partido da Esquerda e de parte dos Verdes), uma significativa participação militar no combate ao Estado Islâmico. Berlim já se tinha disponibilizado antes para substituir parte das forças francesas no Mali. Em menos de um mês, a política europeia de Merkel operou uma viragem que pouca gente antecipava, levando a sério o artigo 42.7 do Tratado de Lisboa e o seu dever de apoio militar à França. Mais uma vez (a primeira foi a questão dos refugiados), Angela Merkel revela uma coragem política que não se esperaria dela e uma visão mais clara dos desafios que os europeus vão ter de enfrentar para garantir a sua segurança num mundo cada vez mais adverso. Tinha já sido crucial na resposta a Moscovo na crise ucraniana. Se a abertura aos refugiados não é um tema popular na Alemanha, uma intervenção militar ainda cria muitos anticorpos na opinião pública, alimentada por décadas de pacifismo depois da II Guerra. Mesmo assim, uma sondagem na sexta-feira indicava que a sua decisão recolhia 58 por cento de apoio entre os alemães. Mas as emoções passam depressa, como sabemos. Almut Moller, do European Council on Foreign Relations, lembra que a ameaça terrorista, que levou ao cancelamento de um jogo de futebol entre a Alemanha e a Holanda no dia seguinte aos atentados de Paris, é vista pelos alemães como um problema mais sério do que o Afeganistão, um destino longínquo cujo interesse para a sua segurança não entendem. Vão perceber agora que o mundo é mais pequeno do que supunham: uma percentagem muito significativa dos refugiados que entram hoje na Alemanha (logo a seguir aos sírios) vem de lá. O investigador lembra também que a resposta ao artigo 42.7, por ser a primeira, definirá para o futuro o nível de responsabilidades que implica. Berlim quer demonstrar que “a pertença à União é importante, quando se trata da segurança, muito para lá do combate ao Estado Islâmico”. E conclui: “Seja qual for o resultado, este é um tempo muito importante para a identidade da Alemanha como país, e da sua política europeia.” O que aconteceu agora em Berlim tem pouco a ver com o debate que é mais visível: saber se a guerra aérea pode resolver alguma coisa. É de novo um corte com o passado recente. Terá repercussões na Europa. “No meio do desencanto e do défice de autoconfiança, há alguma coisa que pode dar à Europa um pequeno electrochoque”, escreve Judy Dempsey do Carnegie Europe. “É a relação franco-alemã”. O que motiva a chanceler “é salvar a Europa da sua autodestruição”, acrescenta a analista.

2. Não quer isto dizer que tudo será fácil a partir daqui. Uma Europa com um sólido pilar de segurança e defesa tem custos e terá efeitos nas finanças públicas dos Estados-membros. Os gastos com a defesa na maioria dos países europeus continuam a cair, nomeadamente na Alemanha. Dos mais de 80 Tornados alemães, apenas 29 estão operacionais. Há um ano, a ministra da Defesa admitiu que o equipamento militar alemão estava em tal estado que se tornava por vezes impossível cumprir com as suas obrigações na NATO, lembra a BBC. Esta tendência terá que ser revertida e custa dinheiro. Finalmente, conciliar interesses estratégicos será uma tarefa difícil no estado em que a Europa se encontra. E se houvesse dúvidas sobre a ausência de um pensamento estratégico, a viragem de 180 graus de Merkel e dos seus pares relativamente à Turquia é, talvez, o maior sinal das dificuldades futuras. A chanceler está disposta a oferecer tudo e mais alguma coisa ao Presidente turco Recep Erdogan (dinheiro, negociações de novos capítulos do pacote de critérios que a Turquia tem de cumprir, incluindo fingir que não vê a forma como Ancara ignora os requisitos básicos de uma democracia), depois de ter (com a França e muitos outros países) posto travão a fundo nas negociações de adesão. Desde que mantenha os refugiados lá fora.

3. Desde a sua fundação (1949), a RFA assentou a sua relação com o exterior em dois pilares: uma forte aliança com os Estados Unidos não apenas porque lhes devia a integração no mundo das nações civilizadas, mas porque dependia deles para garantir a sua própria segurança nos anos da Guerra Fria; a aliança com a França, no quadro da Comunidade Europeia, garantindo a paz no coração da Europa. Os dois pilares eram fundamentais e inamovíveis. Até que Gerhard Schroeder resolveu pôr em causa um deles (a relação com os EUA) quando George W. Bush (filho) decidiu invadir o Iraque em 2003, na sequência do 11 de Setembro. A Alemanha e a França encontraram uma plataforma comum de oposição à guerra, mas foram bastante mais longe, constituindo um chamado “eixo da paz” que incluía o Presidente russo, Vladimir Putin. Foi a primeira vez que Berlim desafiou abertamente a aliança transatlântica. Desde então, e já com a chanceler, os dois pilares da política externa alemã atravessaram uma relativa instabilidade, enquanto a Alemanha unificada procurava o seu lugar no mundo. A crise do euro viria a gerar o “momento unilateral” da Alemanha, com a imposição aos seus parceiros de um modelo de gestão da união monetária para fazer dele a moeda alemã. Sabemos o resto da história. A Alemanha deixou de se ver apenas sob o prisma da geoeconomia. Merkel consolidou a sua relação com Obama e com Hollande. Passou a olhar para a segurança europeia num mundo cada vez mais adverso como uma prioridade. O passo está dado. Como escreve no Guardian a colunista Natalie Nougayrède, “mesmo que não inclua ataques aéreos, é a primeira vez desde a II Guerra que a Alemanha participa em operações militares ofensivas fora da Europa e fora da NATO”.

4. Um outro exemplo chega-nos do Reino Unido. David Cameron, numa súbita inversão da sua política externa, percebeu que tinha de regressar ao palco europeu e transatlântico, sob pena de ficar muito mal na fotografia, como ficou em 2013, quando se recusou a participar nos ataques ao regime de Damasco, na sequência da utilização de armas químicas. Aproveitou a primeira oportunidade para estender a mão à França com uma participação mais forte no combate ao Estado Islâmico. Recebeu um apoio muito significativo nos Comuns depois de um debate atribulado, mostrando que a velha Grã- Bretanha é capaz de fazer a diferença quando se trata de poder militar. “Britain is back”, escreve James Waal da Chatham House. Regressou à cena europeia, enquanto o Labour de Jeremy Corbyn se partia ao meio. A reviravolta só pode ser explicada pela necessidade de retomar o controlo do debate sobre o referendo à permanência do seu país na União, retirando-o da mão dos eurocépticos.

5. A Europa precisaria urgentemente de um outro exercício muito mais difícil: a adopção de uma nova estratégia de segurança e defesa que leve em atenção o mundo actual, cada vez mais multipolar, em relação ao qual o seu poderoso soft power já não chega. Fez um primeiro exercício em 2003, quando Javier Solana saiu da NATO para ocupar o lugar de alto representante para a política externa logo após a crise que dividiu a Europa depois do 11 de Setembro e afectou seriamente a relação transatlântica. Houve já uma tentativa de revisão (em 2010) desse documento, demasiado vago para poder agradar a toda a gente, que não chegou a vingar. Agora, Federica Mogherini foi encarregada pelo Conselho Europeu de apresentar um novo conceito em Junho de 2016. Ninguém sabe o que acontecerá até lá. Quantos atentados não serão evitados ou quantos refugiados continuarão a chegar ou o que a Rússia tenciona fazer amanhã na sua chamada “esfera de influência”. Mas, pela primeira vez desde há muito tempo, há a percepção de que os europeus vão ter de olhar para o mundo tal como ele é e tentar agir em conformidade. Por mais muros que se ergam, nunca serão suficientes para deixar o mundo lá fora. Até porque os Estados Unidos estarão cada vez menos dispostos a fazer tudo sozinhos.

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