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Apesar de tropeços na vacinação, caos na União Europeia seria pior sem compras centralizadas

Para analistas, bloco cometeu erros, mas fatores para atrasos são múltiplos e não se resumem a Bruxelas; situação não deve resultar em fortalecimento de movimentos eurocéticos e populistas
Visitante chega em centro de vacinação em Roma, na Itália, na quarta-feira Foto: Alessia Pierdomenico / Bloomberg / 17-3-21
Visitante chega em centro de vacinação em Roma, na Itália, na quarta-feira Foto: Alessia Pierdomenico / Bloomberg / 17-3-21

A União Europeia (UE) se vê em apuros para vacinar sua população com rapidez, caos que evidencia os tropeços da estratégia coletiva e aumenta o escrutínio sobre suas lideranças. Os fatores para o caos, contudo, são mais complexos do que parecem, assim como suas consequências políticas. Sem a centralização exercida por Bruxelas, afirmam especialistas ouvidos pelo GLOBO, o cenário poderia ser ainda pior.

Desde que a imunização teve início na UE, em 26 de dezembro, foram aplicadas 52,3 milhões de doses, segundo o Centro de Prevenção e Controle de Doenças do continente. Até esta sexta-feira, 8,5% da população do bloco haviam sido imunizados. A discrepância é grande quando comparada a atores similares: no Reino Unido, os vacinados já são 38%; nos EUA, 22%.

Os mais eurocéticos põem o atraso na conta da estratégia da Comissão Europeia, o órgão executivo. Em junho de 2020, o bloco assumiu a responsabilidade de tomar as rédeas das negociações com as farmacêuticas e, assim que as vacinas tivessem seu uso aprovado, de distribuí-las entre os Estados-membros de acordo com o tamanho de sua população.

O combinado, argumentou Bruxelas, seria vantajoso por representar 500 milhões de cidadãos de uma só vez. Além disso, garantiria acesso igualitário à vacina — algo especialmente positivo para integrantes menores e mais pobres que teriam maior dificuldade para articular com as farmacêuticas.

— É fácil criticar a Comissão Europeia, mas, se não fosse por ela, cada país negociaria por si só. Seria muito pior, mesmo que erros tenham sido cometidos — disse Pawel Zerka, do Conselho Europeu de Relações Internacionais.

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Sem protecionismo original

A falta de experiência da Comissão em negociações e sua autonomia limitada, argumentam críticos, atrasaram os acertos com as farmacêuticas. Um dos fatores determinantes para a baixa disponibilidade de doses neste momento, contudo, reside no fato de os europeus, ao contrário dos americanos e dos britânicos, não terem imposto em seus contratos medidas protecionistas que bloqueassem a exportação de inoculantes produzidos no seu território.

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Estima-se que a UE tenha exportado metade das doses que produziu até o momento — a maior parte delas foi para o outro lado do Canal da Mancha, cujo governo condicionou o financiamento da vacina da AstraZeneca/Oxford à distribuição prioritária. A ameaça feita por Bruxelas nesta semana de banir a exportação de doses para nações com quem não há reciprocidade foi em parte uma resposta a tal discrepância.

— Uma das principais razões de a UE estar em apuros é porque agiu mais baseada no conceito de solidariedade que o Reino Unido e os EUA — avaliou Wolfram Kaiser, professor da Universidade de Portsmouth. — É estranho que se caracterize como um fracasso uma postura que deveria ser celebrada, ao contrário da abordagem nacionalista dos britânicos e americanos.

Ainda é cedo para avaliar qual será o impacto político do caos na vacinação. Internamente, alguns Estados-membros questionam a metodologia da distribuição de doses , mas, ao contrário de outras crises, quase não se engalfinham entre si. Mesmo com críticas a nações que optaram por comprar doses por conta própria, o sentimento preponderante parece ser de que a Covid-19 é um problema comum que só será superado coletivamente.

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Impactos locais e globais

Se é provável que haja um aumento dos ressentimentos populares com Bruxelas e com os líderes nacionais, isto não parece se traduzir no fortalecimento de grupos nacionalistas. Nas eleições regionais na Alemanha, por exemplo, a União Democrata Cristã de Angela Merkel pedeu para verdes e para social-democratas . Enfraquecida, a sigla de extrema direita Alternativa para a Alemanha perde força desde o início da pandemia e não aparece bem nas pesquisas para as eleições de setembro.

— Não está claro se os partidos populistas irão se beneficiar da pandemia porque ela pode acabar levando a população a considerar que uma plataforma baseada em fatos e evidências científicas pode ser mais apropriada que as respostas de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro — disse Kaiser.

A rápida vacinação no Reino Unido, possível em parte porque Downing Street negociou seus próprios acordos no pós-Brexit, também não parece ser suficiente para convencer os europeus de que a saída do bloco é uma boa solução. Para Angelos Chryssogelos, professor da Universidade Metropolitana de Londres, o divórcio traz consigo uma bagagem muito maior, representada pelos intermináveis imbróglios e pelas perdas econômicas após o rompimento .

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Para a imagem internacional do bloco, a dimensão da crise pode representar um enfraquecimento do soft power. Chryssogelos crê que a dimensão maciça da pandemia na Europa e nos EUA faz com que as potências ocidentais percam influência global. Isto, a seu ver, pode acelerar o processo de descentralização que ganhou impulso após a crise financeira de 2007. A avaliação de Zerka é similar:

— Os Estados Unidos e a Europa estão perdendo uma batalha narrativa na América Latina e em outras partes do planeta porque as vacinas russas e chinesas chegaram mais rápido — afirmou. — A UE precisa ter cuidado com a imagem de solidariedade que passa para o resto do mundo.

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Movimento antivacina

A politização da vacina é outro ponto controverso no bloco, em especial após a breve suspensão da aplicação das doses da AstraZeneca nesta semana . Uma dúzia de países, entre eles a Alemanha, a França e a Itália, decidiram interromper a distribuição das doses devido a supostos efeitos colaterais não comprovados.

Tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto a Agência de Medicamentos da Europa (EMA) afirmaram que não havia motivos para a paralisação, mas as nações optaram pela cautela até que a EMA emitisse um parecer atualizado. A confirmação da segurança veio na quinta, quando o órgão atestou a segurança e a eficácia da vacina . Os países, em sua maior parte, voltaram a aplicá-la .

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O temor, contudo, é que os danos à confiança pública no imunizante sejam irreversíveis em um continente onde o sentimento antivacina é forte, atrasando ainda mais a imunização coletiva. Em uma pesquisa publicada em junho, moradores de 19 países foram indagados se tomariam um imunizante contra o coronavírus que fosse comprovadamente “segura e efetiva”: enquanto 85% dos brasileiros afirmaram que sim, apenas 59% dos franceses e 56% dos poloneses deram respostas positivas. Somente a Rússia teve níveis mais baixos.

Para Kaiser, os países que optaram pela suspensão foram prudentes e ouviram seus conselhos científicos. Chryssogelos, contudo, argumenta que se tratou talvez “da pior coisa que aconteceu na UE durante a pandemia”:

— No início, todos estavam dizendo que um dos maiores desafios para o bloco seria o sentimento antivacina. Você tinha todos os políticos sérios, instituições e cientistas de um lado e os loucos e populistas do outro — afirmou o pesquisador. — Agora é o primeiro grupo que está indo na contramão por seus motivos políticos e criando esse problema.